A mulher de 50 anos, mantida em condição análoga à escravidão por 44 anos na cidade de Porto Seguro, no extremo sul da Bahia, teve o útero retirado sem consentimento, foi expulsa de casa e tinha empresas abertas em seu nome. As informações foram confirmadas ao g1 por Marta de Barros, advogada da vítima, nesta terça-feira (24).
De acordo com o Ministério Público do Trabalho (MPT – BA), Maria (nome fictício usado para preservar a identidade e a segurança da vítima), vai receber indenização de R$ 500 mil por conta da violência sofrida.
A denúncia é de que a vítima chegou à casa do homem identificado como Heny Peluso Loureiro, quando tinha apenas 6 anos, para trabalhar como doméstica.
A advogada contou que, na época em que teve o útero retirado, a vítima tinha um mioma – tumor benigno que cresce no útero e acomete as mulheres principalmente na fase reprodutiva da vida, segundo o Ministério da Saúde.
“O mioma, em si, não gera um diagnóstico imediato de histerectomia, mas aproveitaram essa oportunidade e fizeram uma castração nela”, relatou Marta.
Além de autorizar a retirada de uma parte do corpo de Maria sem seu consentimento, filhos dos patrões solicitaram auxílio-doença em seu nome.
Ainda de acordo com a advogada da vítima, os filhos da ex-patroa já haviam solicitado Bolsa Família e auxílio por incapacidade temporária, ambos no nome de Maria.
Violência psicológica
Quando a ex-patroa ficou doente, o filho de Henry Peluso mudou a forma de tratar Maria. De acordo com a advogada Marta de Barros, o homem passou a ter que gastar mais dinheiro para arcar com os custos de remédios e comida para a própria mãe.
“Ele achava que Maria pedia demais, mas ela só solicitava o necessário para cuidar da ex-patroa. Ainda assim, ele não gostava e começou a tratá-la mal com gritos e xingamentos”, disse.
Ainda de acordo com a advogada, Maria passou a ser vista como “um fardo que os filhos de Henry Peluso não queriam carregar” após a morte da mãe. A doméstica, então, foi expulsa da casa da família.
Sem saber o que seria da vida dali em diante, Maria pediu ajuda a uma amiga de infância e, com o auxílio dela, entrou em contato com a advogada para denunciar o caso.
“Essa amiga tem um carinho muito grande por Maria. Ela pegou Maria pela mão e disse que ela não poderia ficar desamparada após a morte da ex-patroa”, comentou Marta.
Quando foi juntar as provas para abrir o processo, a advogada descobriu que o nome da doméstica era utilizado sem o seu conhecimento. “Criaram empresas no nome dela, um CNPJ de uma barraca de lanches, um MEI, contas bancárias com movimentações altas e constantes”, explicou.
Questionada se os filhos da ex-patroa fizeram algum empréstimo bancário no nome de Maria, a advogada disse que não.
Ainda segundo Marta, os filhos da ex-patroa assinaram a carteira de trabalho de Maria como vendedora, porém ela nunca trabalhou nesse cargo.
Além disso, eles recolhiam o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) da doméstica.
Em seguida, Maria foi “demitida” do cargo de vendedora e os filhos da ex-patroa receberam o seguro desemprego. Dinheiro esse, assim como todos os outros valores recebidos em seu nome, a vítima não teve acesso, nem conhecimento.
Meio milhão em indenização
O Ministério Público do Trabalho (MPT-BA) informou, na segunda-feira (23), que Maria vai receber uma indenização de R$ 500 mil após ter sido mantida em condição análoga à escravidão.
A vítima chegou à casa de Heny Peluso Loureiro ainda criança e, na época, não tinha certidão de nascimento. O documento foi obtido pela patroa anos depois, com informações falsas.
Como não existia nenhuma informação sobre a origem dela, apenas registros de que não falava português quando chegou, suspeita-se que Maria tenha origem no continente africano.
Durante os 44 anos em que foi mantida em condição análoga à escravidão, ela não estudou, não fez amizades, nem teve relacionamento amoroso. A vida dela era voltada totalmente para servir à família de Heny Peluso Loureiro, sem receber nada por isso, além de casa e comida.
O MPT-BA abriu inquérito para apurar a situação e, depois da investigação e de tentativas frustradas de acordo extrajudicial, o órgão ingressou com uma ação civil pública. Em paralelo, a advogada da vítima entrou com um processo na Justiça do Trabalho para cobrar o pagamento das verbas trabalhistas.
No fim do mês passado, o MPT-BA e os representantes do espólio da patroa e os dois filhos chegaram a um acordo, que teve participação da vítima. No documento assinado por todos e já homologado pela Justiça do Trabalho, os empregadores não reconheceram culpa, mas se comprometeram em pagar R$ 500 mil de indenização por danos morais, além de regularizar a carteira de trabalho de Maria.
A indenização deverá ser quitada até fevereiro de 2025, prazo limite para a venda de dois imóveis que pertenciam à empregadora, sob pena de multa de 50% desse valor. Até lá, os dois filhos de Heny devem manter o pagamento de um salário mínimo mensal.
Nº de casos cresce na Bahia
Segundo o MPT-BA, a possibilidade de obter autorizações judiciais para fiscalizar as condições de trabalho em residências e uma maior atenção da sociedade para o tema ocasionou no surgimento de mais denúncias, na realização de operações de fiscalização e no resgate de trabalhadores domésticos em situações análogas à escravidão.
O órgão estadual aponta, inclusive, um indicador dessa realidade: cerca de 20 baianos integram, desde o primeiro semestre deste ano, a Lista Suja – cadastro dos empregadores que submeteram trabalhadores a condições análogas à escravidão mantido pelo Ministério do Trabalho e Emprego.
Os casos de trabalho análogo à escravidão são investigados pelo MPT-BA e as vítimas são resgatadas. Em seguida, o órgão conclui inquérito e tenta negociar o ajuste de conduta, porém, se não houver acordo extrajudicial, o caso é levado para a Justiça do Trabalho.
A procuradora Manuella Gedeon, que coordena as ações de combate ao trabalho análogo à escravidão na Bahia, destacou que, a partir de 2020 houve um aumento significativo no número de denúncias recebidas, o que possibilitou a fiscalização e apuração dos casos.
“Há um problema antigo e uma cultura antiga no nosso país de casos de trabalho escravo. Nós resgatamos mulheres e homens que estão nessa condição há 30 ou 40 anos, em casas de família, trabalhando sem nenhum direito. Então, isso sempre existiu, mas agora a equipe está conseguindo chegar”, reiterou.
Na Bahia, o combate a essa prática é realizado sempre em rede, por meio da Comissão Estadual para Erradicação do Trabalho Escravo (Coetrae-BA), com participação efetiva do Ministério Público do Trabalho (MPT), Ministério do Trabalho e Emprego do Governo Federal, Secretaria de Justiça e Direitos Humanos do Governo do Estado e Polícia Rodoviária Federal, dentre outras instituições.
Fonte G1 Bahia